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Escrever, pra quê? - por Maria Luiza Picasso, publisher da Typus

  • Foto do escritor: Maria Luiza Picasso
    Maria Luiza Picasso
  • 17 de nov.
  • 3 min de leitura

Na esquina, um homem berra sozinho. No feed, um luto novo por semana. No rosto, a contração dos que já não esperam. Tudo isso enquanto, do conforto da minha sala, com meu notebook a tiracolo, entre as plantas na sacada e as velas no hall de entrada, escrevo. Pra quê?


Há dias em que o mundo me parece um hospital sem médicos: gemem os corredores, gritam os quartos, mas ninguém responde. E então me sento, feito uma tola, com uma caneta na mão — ou os dedos sobre o teclado — e penso: pra quê?


Pra quê escrever, se o sangue escorre da tela do celular, se os números da fome empilham cadáveres invisíveis, se a rua lateja miséria e a esperança virou produto de nicho? E se escrever for apenas uma forma elegante de fugir?


No entanto, como se fosse, ainda assim, algum tipo de gesto — ou talvez o único gesto possível — , escrevo. Como quem resiste à demolição lenta do espírito. Como quem acende um fósforo num pátio escuro e sabe não ser luz suficiente; mas ainda assim o acende, e deixa queimar as pontas dos dedos na tentativa de iluminar o quanto pôde.


Não é uma questão de utilidade. Já me basta que o mundo grite o tempo todo “pra que serve?”. Pois que sirva pra me manter de pé. Que sirva pra dizer que ainda sinto. Que sirva, ao menos, pra deixar claro que não aceitei a mudez.


Alguém rabiscava poemas no campo de extermínio. Alguém mantinha um diário escondido na favela. Alguém gravava sua dor em papel de pão. Não era fuga — era modo de respirar.


Escrever não apaga incêndio. Não levanta prédio. Não distribui cesta básica. Mas talvez evite que eu despenque de vez no desânimo. Talvez ajude a manter acesa uma parte que ainda acredita que a vida não pode ser só isso: cronograma, catástrofe e capital.


Escrevo porque me incomoda a barbárie e me assusta a indiferença. Porque me ataca a estupidez e me dói a pressa. Porque o silêncio imposto me parece cúmplice.


Tem algo que não cabe no grito. Algo que escorre pelos olhos e não se traduz em política de Estado nem em discurso militante. Tem coisa que só se alcança se a gente baixar o tom e começar a rabiscar perguntas para as quais sabidamente não temos respostas ainda.


Escrevo para não deixar que me roubem o vocabulário. Porque toda vez que a linguagem empobrece, a imaginação empobrece junto. E sem imaginação, o que sobra é o deserto: da emoção, da ideia, da possibilidade de outra realidade.


Quando comecei a escrever, achei que escreveria para mudar o mundo. Algum tempo depois, quis mudar as pessoas. Hoje, desconfio que escrever seja um modo de não me apagar por inteiro. De sustentar alguma estrutura em meio à implosão — quando tudo urge e tudo arde, o mais radical talvez seja justamente permanecer inteiro.


Fugir seria fechar os olhos. Escrever é mantê-los abertos mesmo quando a vista dói. Mesmo quando o que se vê é inabitável. Não é heroísmo. Não é vaidade. É só a tentativa de não se deixar apagar. É dizer: apesar de tudo, ainda sou capaz de sentir. E não há tirania que resista a isso.


Às vezes, é só um caderno manchado, uma tela aberta, um corpo tentando não esquecer quem é. Que se atreva a narrar, sabendo que a narrativa é sempre gesto político — mesmo quando fala só do amor perdido, do pai ausente ou da água que ferve.


 
 
 

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